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Cheiros de Infância

(texto de 2007)


Hoje é meu aniversário, embora ninguém saiba. Já vivi tantos dias que esta data não tem nada de especial. Daqui a pouco desço para o refeitório, café com leite e pão com manteiga. Um passeio no jardim mais tarde, quem sabe? Posso ouvir meu velho rádio (ele completa 20 anos comigo). Só o que posso fazer é esperar o amanhã, e assim tem sido desde que cheguei aqui. A melhor e única companhia têm sido minhas lembranças. Apesar das 89 primaveras, nunca perdi o dom de não esquecer de nada. Como uma máquina que ainda não inventaram, fecho os olhos e consigo viajar no tempo. Revejo o nascimento do meu primeiro filho, volto um pouco e jogo futebol na rua, ainda moleque. avanço e fito o reflexo do meu rosto jovem, nos olhos de jabuticaba de Elvira. Ontem, algo inusitado aconteceu. Os netos de D.Amélia vieram visitá-la. Enquanto a senhora beijava as crianças, estas se esquivavam para correr pelo pátio. A menininha tropeçou e caiu aos meus pés, soltando o saquinho de pão-de-mel que carregava. Agora, quem tinha os olhos marejados não era só a avó da pequena. Fui transportado para outro lugar, era bom. Me senti ansioso enquanto um sorriso reforçava as rugas do meu rosto. Aos poucos, um cenário se materializou à minha frente. Há quanto tempo não pensava em vovó, faz tanto que ela se foi. Até meus 9 anos, o acontecimento mais aguardado do ano, não era natal e muito menos dia de páscoa. Gostava mesmo era do meu aniversário. Sempre pela manhã, vovó Celina me levava à cozinha e preparava uma bandeja de pão-de-mel só para mim. Me contava histórias enquanto eu raspava o tacho, e depois, para meu deleite se completar, fazia uma jarra de suco de maracujá fresco. Nós dois comíamos e eu adorava. Ela nunca esqueceu uma data festiva, tinha o seu jeito de mostrar que cada um era especial. Era gordinha, risonha e quituteira de dar inveja. Desde ontem, não parei de pensar nela. Agora me recordo da última vez que a vi. Ela estava deitada no quarto, muito doente aguardava a morte chegar, assim como a espero hoje. Apertou meus dedos com suas mãozinhas enrugadas e me fez uma promessa: “Nós ainda vamos nos encontrar”. Confesso que naquela época passei algumas noites na janela, esperando por uma visita que nunca viria. Acordei com um sentimento estranho hoje, diferente de tudo que vivi. Ontem, antes de dormir, fiquei um longo tempo abraçado com D.Amélia, minha amiga e muito minha nos últimos anos, e hoje, não estou com vontade de sair do quarto. Sinto um aperto no peito e me deito; o meu coração já bateu tanto que anda falhando ultimamente. O aperto está cada vez mais forte. Durmo. Sinto cheiro de pão-de-mel, abro os olhos e vejo vovó Celina, ela veio cumprir sua promessa de tantos anos. Ela sorri, pega na minha mãe e neste instante eu sorrio também. Ela me conduz e caminhamos juntos.

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"Teve um dia que você foi meu. Eu sabia que era, você achava que era e eu tive muito medo disso. Nós dois sentados no tapete, com o sol do final de verão deitado do nosso lado e o silêncio das crianças brincando longe. Você me deu a mão, me encostou na parede e me abraçou. E disse que era meu, naquele dia pelo menos, eu sabia que era. As minhas pernas foram ficando fracas e eu sentei no chão para disfarçar. Você é meu, agora, mesmo com as outras moças por aí, com a minha falta de romantismo e com o meu band-aid descolando do calcanhar, você é meu. O que eu faço com você agora? Pensei que poderia deixá-lo dentro do meu armário, eu te tiraria de lá quando precisasse muito de uns dos seus versos fáceis que me faziam entender o mundo e seus tons de cinza. Depois imaginei que você não ia gostar de ficar preso no armário e não poder ver as coisas por aí, você estava tirando a minha calça com aquela sua delicadeza como se não quisesse amassar as roupas e eu estava pensando aonde ia enfia...

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