E ele tinha dez anos e os cabelos lisos e bem aparados na testa, um cachorro com os pêlos em nós e somente uma muda do uniforme da escola. Dormia apertado no berço velho que o pai arrancara as laterais depois que o menino começou a bater nelas já grande para o espaço de bebê. Dez anos e um dente molar que caiu e estava demorando a crescer. Uma casa em que as louças estavam sempre limpas, havia cheiro de café todas as manhãs, não faltava cerveja e futebol no domingo e nem novela a noite.
Juninho sabia, embora fosse novo demais para entender muitas coisas que havia alguma coisa diferente com as segundas de manhã. Quando, a mãe aparava as unhas dos pés bem rentes e usava umas folhas plásticas para depilação que enchiam o cesto de lixo. Era o único dia da semana que ela usava um perfume importado de cheiro doce/ nauseante e que se demorava no banheiro antes de levá-lo a escola
O que ele não sabia direito é o que é essa instituição que chamam família, do que ela é composta, para que serve ou para quem serve. Ele sabe que ele tem um pai que sai antes dele acordar e volta ao final do dia, a mãe que cuida da casa da maneira que consegue e uns avós que aparecem no natal e em alguns finais de semana. Ela, a mãe, é muito amorosa mas fala pouco (exceto nas segundas e nas terças à tarde, quando tagarela com a amiga no telefone enquanto espera o bolo de cenoura crescer no forno). O pai e a mãe brigavam muito quando Juninho tinha lá para os seus oito anos, ele lembra. Mas agora tudo é silêncio. Ritual, rotina, quotidiano ou seja lá o que for, o fato é que não se conversa mais naquela casa e quando por algum motivo a TV é desligada, alguém sente um vazio grande quase pânico do tipo “tem alguma coisa errada” e se apressa em apertar o botãozinho preto do lado esquerdo do aparelho.
Aquela era mais uma segunda-feira de cheiro doce, de caminhar mais leve, de beijo de batom na testa e de tchauzinho nervoso na porta da escola. Juninho entrou lembrando que era aniversário dele e que quando chegasse a casa teria bolo e seus amigos chegariam um a um e o cachorro estaria limpo e escovado lambendo as mãos das crianças que muito espertinhas correriam atrás dele. Todo mundo via que Juninho era quieto e avesso as brincadeiras agitadas mas criança é criança sobretudo no dia do próprio aniversário, sobretudo quando já estava deixando de ser criança, onze anos já é pré-adolescente, não é? E ele mal podia agüentar a ansiedade que fazia seus pés balançarem. A mãe foi buscá-lo esbaforida, atrasada, o Juninho com fome e ela com uma cara muito fechada. Ele não sabia o que acontecia nas segundas de manhã mas entendeu que algo havia dado errado. A maquiagem da mãe que sempre era bonita agora não passava de uma máscara mal colocada que se ele olhasse de perto via derretendo na ponta do nariz e perto do queixo.
O caminho para casa foi silencioso e ele até teve medo de pedir para ligar o rádio do carro como sempre faziam. Em casa não tinha almoço quentinho, bolo de chocolate e sequer a possibilidade da visita de algum amigo. Na casa tinha uma sombra fria - podia estar o sol que fosse, lá dentro era sempre escuro- e o cachorro dormindo e cansado demais para fazer festinha em quem chegasse. A mãe de maquiagem descascando encheu um copo de café amargo e ficou ali, em qualquer lugar da casa fria, amargando qualquer coisa de café, qualquer coisa que Juninho não sabia o que.
O menino que já não se julgava mais menino (chegara o momento de trocar o berço por cama?), o menino que não ia ter aniversário porque alguém esquecera dele, o menino que mora na casa que a TV nunca desliga, o menino que não entende as segundas-feiras, pois bem, o Juninho adormeceu sem querer no sofá e despertou com o barulho do telefone. Tocou uma vez, duas, e na metade da terceira a mãe atendeu:
-Alô.
- ...
- Oi Marisa, tudo bem nada... Conversei com ele sim. Deu tudo errado.
-...
- Ah, ele disse que é melhor a gente parar de se ver, que eu tenho o Adílio e o Juninho, que vai ser difícil começar assim. Que eu devo resolver a minha vida primeiro, mas sabe, resolver como e para quê? Não dou um mês para ele se arranjar com outra e deixar tudo para lá. Um ano e meio, Marisa, um ano e meio! E agora que eu enfim tomei a decisão de mudar as coisas, ele não quer mudar nada.
-....
- Olha, você tem razão mas por enquanto vamos deixar assim. Vou desligar, estou com dor de cabeça.
-...
- Pra você também, obrigada por tudo, viu?
Nessa hora, quando ouviu o “obrigada por tudo, viu?”, pois bem, nessa hora o Juninho que fingia estar dormindo entendeu tudo. Talvez porque com onze anos ele já estava grande o suficiente para saber que mulheres e homens se encontram, às vezes escondido. Agora, quase adolescente, entendeu que a vida não era a casa dele e a escola dele e o pai e a mãe dele que não se falavam direito. Ele, assim, de sopetão, imaginou que o vestido de segunda-feira era mais bonito e a pele mais fresca e que o pai nunca via aquelas roupas e nem sentia o cheiro bom da mãe. E a palavra surgiu bem grande, com letrinhas piscando rodeadas por glitter de fazer trabalho em cartolina: Amante.
Ele ficou ali, deitado, tentando digerir a palavra e tudo que vinha com ela. Aquilo que ele aprendera nas novelas quando alguém sempre tem um outro alguém tendo já alguém e ele tenta lembrar se era o vilão ou o mocinho e qual era o final. Até que a palavra, que dessa vez foi indigesta demais, saiu assim sem anunciar. Amarela e nervosa, sujando o tapete da sala enquanto a mãe vinha correndo para segurar sua cabeça. Saiu tudo ali, não sobrou nada. Quando enfim acabou de pôr para fora, ela deixou o menino deitado e trouxe um copo de água gelada:
- Toma devagar. Mas me fala o que aconteceu. Você não disse que estava se sentindo mal.
- Foi de repente, mãe.
- Fica deitadinho então, meu bem, e vê se melhora que amanhã você já sabe. É o grande dia! Vê se melhora para poder comer o seu bolo.
- Eu não tenho onze anos ainda?
- Só amanhã.
E aí o Juninho percebeu que ainda faltava um dia para os seus tão esperados onze anos e até sorriu destinado a aproveitar aquele último dia de criança. Quando ele ainda não precisava entender nada, quando as novelas eram uma coisa chata que ele não gostava, quando as segundas eram só o primeiro dia da semana e quando só existiam ele, a mãe e o pai.