Não sei se foi a primeira vez que aquilo aconteceu mas sem dúvida é quando me recordo sendo a primeira vez. O ano era de dois mil e alguma coisa e eu estava prestando vestibular. Estava sentada em uma sala de faculdade na tijuca, única vez na minha vida que a UFF e a tijuca estiveram no mesmo lugar. Lá para o meio da manhã e metade do exame, saí daquele mundo de números, cartão de resposta, geografia e redação e fui levada para um outro lugar por alguém que até então só fazia o que eu mandava: o tal do pensamento. E se eu enlouquecesse? E se fosse agora? E se eu me levantasse agora e começasse a rodar, rodar? Todos iam olhar para mim, o fiscal da prova ia me segurar mas ninguém ia conseguir me deter, eu só ia rodar, rodar, até que iam perceber que eu enlouqueci mesmo. Veriam nos meus olhos de loucura que eu não estava ali assim de verdade, mas o meu pensamento que agora mandava no corpo todo estaria me fazendo rodar, rodar.. Em algum momento veriam que eu estaria refém dele e do meu próprio corpo e daquele ritmo frenético sem música, ritmo de veia que pulsa. Alguém acharia meu telefone celular na bolsa e meu pai viria correndo muito rápido e me levariam para o hospital. Espetariam a veia do braço direito (a do esquerdo é difícil de achar) e colocariam um daqueles remédios fortes, e nem o pensamento e nem o corpo resistiriam à ele. Sentiria formiguinhas pelo corpo todo e veria o rosto de minha mãe ficar longe, o rosto preocupado e amoroso cheio de medo dela, seria transportada para um lugar bom, dos sonos leves e camas brancas e limpíssimas de hospital.
Voltei a mim, do pensamento ruim, morrendo de medo. Sim, sou capaz de enlouquecer, posso começar a rodar, rodar, agora mesmo.
O final daquela prova foi a coisa mais difícil que eu fiz, morrendo de medo de começar a rodar, rodar. Mal conseguia enxergar as letrinhas muito miúdas e que se embaralhavam enquanto o estômago se contraía e aquela sensação tomava conta de todo o corpo. Era o coração que batia rápido, leve tontura me balaçando para a esquerda e para a direita e o mundo parado ali : Naquela sala do segundo andar da Veiga de Almeida, de vestibulandos tensos correndo contra o relógio, de ar morno de janeiro, aquele era o cheiro de medo, do meu medo.
Incrivelmente passei e poucos meses depois estava eu cruzando a baía ma barca, letárgica barca, quando lembrei o que acontecera no dia da prova e que eu poderia enlouquecer ali também, entre o rio e niterói, lugar nenhum e começar a rodar, rodar. As pernas começaram a balançar e o sangue foi todo para a cabeça. Olhos no pão de açucar, olhos na água espumando bem perto, no adolescente que dormia, na criança excitada com o passeio, nos botes salva-vidas, em todos os peixes que estavam abaixo de mim e eu podia enxergar, um a um, mas eu só pensava que a qualquer momento eu poderia rodar, rodar. Engoli o enjôo, passei a mão nos cabelos, contei os botões da camisa do homem em pé, apressado para descer primeiro. Depois contei quantas listras havia na sua camisa, depois comecei a contar quantos fios de cabelo branco sobressaíam entre os pretos e enfim a barca atracou. Levantei e esqueci de tudo aquilo por um bom tempo.
Um dia eu pensei em contar para o meu analista sobre o meu medo de começar a rodar, rodar em qualquer lugar. Não contei temendo que, ao deixar o pensamento escapar pela boca, ele se tornasse importante, real. E se eu começasse a rodar, rodar ali? Na frente dele, driblando o divã preto com almofadinhas brancas?
Hoje eu acordei cedo e em um domingo de frio fiquei na cama, comendo sanduíche de queijo prato e bebendo chá de erva-doce. Aí eu assisti toda essa bobajada de programa de domingo, dei banho no cachorro, arrumei umas roupas e fui com uma amiga assistir o filme que ganhou o Oscar mas que era uma merda. Cheguei a casa, tirei a roupa e de repente tudo ficou frio. E se eu começasse a rodar, rodar? Sozinha. Quanto tempo o corpo suporta sem vomitar, desmaiar? E se eu telefonasse, preciso telefonar, voltar para a rua, não, na rua é mais embaraçoso, tem telefone de hospício, se o próprio louco liga para o manicômio ele não é louco, certo? Aí eu vim aqui, comecei a escrever esse texto e estou morrendo de medo de quando terminar, levantar da cadeira, colocar os pés de meias grossas no chão frio e começar a rodar, rodar....
Um dia eu pensei em contar para o meu analista sobre o meu medo de começar a rodar, rodar em qualquer lugar. Não contei temendo que, ao deixar o pensamento escapar pela boca, ele se tornasse importante, real. E se eu começasse a rodar, rodar ali? Na frente dele, driblando o divã preto com almofadinhas brancas?
Hoje eu acordei cedo e em um domingo de frio fiquei na cama, comendo sanduíche de queijo prato e bebendo chá de erva-doce. Aí eu assisti toda essa bobajada de programa de domingo, dei banho no cachorro, arrumei umas roupas e fui com uma amiga assistir o filme que ganhou o Oscar mas que era uma merda. Cheguei a casa, tirei a roupa e de repente tudo ficou frio. E se eu começasse a rodar, rodar? Sozinha. Quanto tempo o corpo suporta sem vomitar, desmaiar? E se eu telefonasse, preciso telefonar, voltar para a rua, não, na rua é mais embaraçoso, tem telefone de hospício, se o próprio louco liga para o manicômio ele não é louco, certo? Aí eu vim aqui, comecei a escrever esse texto e estou morrendo de medo de quando terminar, levantar da cadeira, colocar os pés de meias grossas no chão frio e começar a rodar, rodar....