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O fim do mundo


       Eu sabia. E ninguém mais sabia. Dia e hora. E porque se sabe, ah, isso eu nunca soube. Tem coisa que é assim, aparece do nada igual notícia boa. Acordei e veio. Como quem vai se acostumando com a luz depois de muito tempo no escuro. Pupilas retraídas e claro. Não posso negar, sim, passou da hora, mas é aquele tipo de coisa que parece que nunca vai. Foi. Então é isso mesmo? 
       A saudade rasgando. Na boca, no peito, na boca do estômago. Rasga de deixar fiapo. Eu senti, doeu. Sentei, escrevi. Você não veio na sexta. Era só mais uma sexta e eu ainda lembrava aquelas outras que a gente chegava a casa e se jogava na cama, meio sem jeito até se ajeitar. O quartinho, ele virava mais um e éramos três quando estávamos lá, configurava tempo-espaço de outra forma. Às vezes se apertava até a gente entrar um no outro, por outras se dilatava e eu te perdia de vista. Tinha os dias que o tempo não passava, a gente nem sentia fome, e os tantos outros que o relógio nos empurrava para fora dali. 
       Vi, ando vendo o que eles não veem. As pessoas, sim, tirando nós tem um monte delas, não sabem. E porque deveriam saber? Vão e vem, correm para pagar as contas, para beber a cerveja do final do dia,  carregam seus sonhos bem presos entre os dedos. Os dedos, quando seus, entram, apertam, esfregam até quase doer, e eu, eu enlouqueço. 
          Tem dia, logo pela manhã faz um silêncio parado, como se tudo estivesse morto. E aí vem uma, como posso dizer, uma onda. Me leva, eu aperto as unhas dentro das mãos, machuca um pouco. Os olhos arregalados, mesmo no escuro, se abrem, como se fossem comer alguma coisa. E quando enfim volto a mim está tudo nítido. Acho que isso é o que os índios chamam de "ver". Eu vejo. E sem o peyote, sem mescalito, sem cogumelo. Vejo e demoro uns dias para esquecer. Nessa mania de querer enxergar o lado que você não mostra.
          Sinto um perfume doce entrar pela janela, o dia morno engolindo lá fora e eu aqui, com a descoberta apertando a garganta. Um nó, o telefone não toca há dias. Com saudade e ligeiramente magoada como as mulheres costumam ficar. O cachorro vem me lamber os pés, alheio ao futuro que não nos espera: "É hoje, hoje acaba". Coisa dada, inevitável. E “tu reclamava” da minha mania de desviar, é que se encaro, você descobre: "Eu gosto mais de você do que dele". Sussurrei tão baixo que nem ouvi. Teu sono leve, as costas lisas e quentes, o braço formigando e eu nem me incomodava de ouvir o teu serra-maxilar a noite toda. Só um menino ainda, penso que homem de verdade não deve sofrer de bruxismo. Tá na hora.
       Subi a Rua das Laranjeiras correndo, enquanto tudo ia derretendo. As cores primeiro, os prédios, as roupas ficando cinza. Depois das cores as bordas iam se misturando, turvas, encolhendo até virar nada. As pessoas por último, assustadas, conformadas. No fundo a gente sabe que uma hora vai acontecer. Aconteceu, dentro da nossa cabeça, no começo, quando eu me perdia na pintinha que você tem na nuca e demorava em me achar. O cabelo preto e bagunçado, a pele branca, a barba que nunca via gillete e o beijo que fez o trânsito parar.
      Como nos sonhos, como nos filmes, não tinha mais ninguém na rua, só eu. As casas como que mal assombradas, nem os gatos de rua resistem ao frio da madrugada do Cosme Velho. O Cristo está pertinho mas eu nem levanto a cabeça para buscar alguma bênção. Estou com pressa. Você ainda assiste Seinfeld de madrugada? Bati na porta duas vezes, você abriu assustado. e o mundo. acabou. no. seu. pescoço. 


  

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