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A faxineira

     Naquele tempo tinha 23 anos e dividia meu tempo entre a redação do jornal, a Lourdinha e a nossa quitinete. Alugada ali na praia do Flamengo e com vista para a janela de Dona Edméia que morava em um prédio caindo aos pedaços que nos ladeava. A vista não incomodava, sentíamos a brisa que vinha da praia e naquela época era maresia fresca, não nos deixava esquecer a proximidade do mar e aquele clima zona sul que nos tomava sempre que chegávamos a janela. Dona Edméia não gostava e tratava de pegar a toalha de mesa e sacudir com força, a gente entendia e voltava para a nossa gaiola.

     Conheci Lurdinha no colégio e foi amor à primeira vista. No primeiro dia do terceiro ano, colégio novo para ela e novidade para todos os rapazes, notei que ela usava uma meia branca e a outra bege clara. Pensei que só alguém que não ligasse em mudar de colégio e ares poderia errar na escolha da meia assim. Fitei-a enquanto comia um biscoito sozinha no canto do pátio e ela retribuiu. A partir dali ficamos inseparáveis e ela não teve muitas amigas no terceiro ano, eu me afastei dos meus e viramos um só. No ano seguinte a família voltou para Belo Horizonte mas Lurdinha bateu pé, ficou morando com a avó carioca por dois anos até a senhora morrer e deixar para nós a indefectível quitinete no Flamengo.
 
    Pintamos as paredes de verde claro e vendemos todos os móveis da velha para o brechó. Nossa extravagância fora uma cama que na época custou-nos o equivalente a três salários meus e da Lurdinha juntos. Ela era secretária do vereador Alves da Costa e eu o faz tudo da redação do Carioca. Lembro-me bem da nossa cama no meio do apartamentico, ladeada por uma cômoda da qual as roupas pareciam cair pelos fundos das gavetas. Havia um cabideiro envernizado com nossos casacos e chapéus, além de três malas que trouxera de casa e nunca desarrumara. Anos mais tarde uma vidente duvidosa me confidenciara entre uma entrevista e outra que aquele fora o fator determinante para o nosso término: malas devem ser desfeitas sempre.

     Levávamos a nossa vidinha mais ou menos e éramos muito felizes daquele jeito. Nos bastávamos, éramos os nossos amigos, família e amantes. Ela era minha e eu dela, ponto final. Gostávamos de sentar na nossa super cama aos domingos para conferir o jornal, tomávamos o café na cama sempre muito quente embora o sol castigasse nossa janela no final da manhã. Depois do café ficávamos olhando para o teto curtindo o nada para fazer até que a mãe dela ligava e falavam por longos minutos. Nesse momento eu pegava a toalha e tomava um bom banho gelado no nosso minúsculo banheiro 

(INTERVENÇÃO DA AUTORA: NECO DEVE DISCORRER SOBRE O BANHEIRO)

     Nosso banheiro era pequeno mas completamente independente do resto do apartamento. Vaso sanitário, pia, ármario, chuveiro, ladrilhado azul. Os ladrilhos nada mais eram do que quadrados perfeitos que eram esfregados pela Lurdinha todo sábado de manhã. Quadrados azul brilhantes e espelhados.

     Um dia, enquanto fazia a barba, reparei que havia um desenho feito de caneta preta em um dos ladrilhos do nosso banheiro. Um rosto, aliás, dois olhos, um nariz mal feito e uma boca pequena sorridente. O tipo de coisa que Lurdinha faria. Achando graça de sua arte, reparei que a caneta estava ao lado da pasta de dentes e não perdi tempo, desenhei olhos e uma boca que fumava um charuto no ladrilho ao lado. Lurdinha não me falou nada mas no dia seguinte pela manhã, observei mais um desenho em outro ladrilho, dessa vez eram duas bolinhas pretas e uma boca grandona e triste. E assim ficamos por um mês mais ou menos, todos os dias brindávamos o outro com nossos desenhos e , como num acordo tácito, nunca comentamos com o outro sobre a nossa brincadeirinha no banheiro. Nunca falamos sobre o assunto com ninguém, não recebíamos visita e é a primeira vez que falo sobre o assunto depois desses 33 anos. Em um certo dia paramos com os desenhos mas nunca o apagamos, nos conferia sorrisos silenciosos todos os dias quando nos isolávamos naquele cubículo cor de azul. 

     Até que um dia, Lurdinha ganhou um aumento no emprego e resolveu me fazer uma surpresa. Há muito eu reclamava da bagunça da nossa quitinete, da sujeira que se acumulava nos rodapés e da nossa falta de talento para fazer qualquer tipo de faxina no ambiente. Por mais que nos esforçássemos sempre tinha um pouco de poeira cercando o tapete e a mesinha da TV. Suspeitamos que Dona Edmeia de alguma forma jogava aquela sujeirada toda pela janela, mas depois que seu papagaio morreu, inocentamos a pobre coitada como se a morte do animal a redimisse de qualquer culpa. Com o dinheirinho a mais, minha digníssima quase esposa, contratou uma faxineira amiga de uma amiga para nos brindar com uma faxina daquelas. Seria na sexta-feira e a chave fora deixada com o porteiro. 

    Naquele dia começou nossa ruína, e imagine você como me é dolorido lembrar. Passei para buscá-la no escritório e fomos comer uma pizza ali em Botafogo. Tomamos alguns chopps e fomos para casa. Cheguei um pouco alto e sem acender a luz do banheiro não notei nada de diferente, só o cheiro de lavanda que tomou conta do apartamento me obrigando a fumar 3 cigarros seguidos até que a brisa do campo fosse embora. No dia seguinte, sábado, dia da quase faxina de Lurdinha, dormimos até tarde aproveitando o dia livre proporcionado pela abençoada faxineira. Acordei por volta de meio dia com a bexiga incomodando e corri para o banheiro, após usar o vaso sanitário, lavei as mãos e notei a grande mudança: o reflexo no espelho denunciava os ladrilhos limpos, espelhados, higienizados e sem qualquer resquício da tinta preta. Não falei nada, claro, porém me senti um pouco triste. Começar o jogo novamente não tinha graça, nada poderia ser feito.

     Com o tempo Lurdinha foi ficando para baixo também e depois de dois meses mal nos falávamos. Começamos a brigar por coisas pequenas, ela reclamava que eu deixava o jornal espalhado em cima da cama, eu reclamava da louça sempre suja que se acumulava na pia todos os dias. O final você já sabe, leitor, voltei para a casa dos meus pais e Lurdinha, não suportando um Rio de Janeiro sem mim, voltou para Belo Horizonte. Nunca mais nos vimos, mas imagino que esteja casada e com dois filhos homens. Eu tenho o meu trabalho e dois divórcios. 

     Nunca esqueci daquela quarta-feira de cinzas em que peguei as 3 malas quase intactas e deixei a quitinete sem olhar para trás. Lurdinha culpava o meu trabalho e a falta de tempo para ir ao cinema ou ao teatro. Por muito tempo culpei o amigo da amiga da amiga do trabalho que andou cantando de galo para cima de Lurdinha. Mas acho que no fundo, no fundo mesmo, nós dois sabemos que a culpada foi a faxineira.

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